Convidada de junho no Quintal da Língua Portuguesa, Mafalda Milhões conversou com o Blog do Quindim sobre as expectativas para o encontro desta semana. Na pauta, as interfaces culturais e artísticas nos países que falam português, a saudade do Brasil e o trabalho da Bichinho do Conto durante a pandemia causada pelo novo coronavírus.
Mafalda Milhões mora na vila de Óbidos, em Portugal. Formada em Artes Gráficas, é ilustradora, editora, livreira, escritora, mediadora de leitura, curadora do FOLIO ILUSTRA no Festival Literário de Óbidos e uma das idealizadoras do projeto O Bichinho do Conto.
Participou de várias exposições coletivas e individuais. Em 2014, foi agraciada na Espanha com o Gourmand Award na categoria Best Illustration CookBooks com o livro Maruxa. Também é autora de Uma biblioteca é uma casa onde cabe toda a gente (Editora Abacatte), que ganhou o Selo Seleção Cátedra da Unesco 2019. Confira a entrevista completa:
BLOG DO QUINDIM: Em 2019, você esteve no Instituto Quindim, lançando seu livro, inaugurando exposição, participando de bate-papos e oficinas. Qual a expectativa para esse reencontro, mesmo que virtual?
MAFALDA MILHÕES: Para mim, 2019 foi um ano maravilhoso em muitos aspectos. Por conhecer a vossa casa, que é a minha casa no Brasil. Por perceber que são mais as coisas que nos unem do que aquelas que nos separam, perceber as pequenas semelhanças em cada detalhe. E, sobretudo, por estar perto do Volnei, em Caxias (do Sul), no Quindim. Foi maravilhoso.
Eu mentiria se dissesse que a experiência se resumiu à literatura. Foi muito mais que isso, foi uma experiência com muitas camadas. O fato de eu ter ficado num alojamento informal, uma casa de família, que me acolheu como mais um membro. E também de ter aberto outras possibilidades de entrar e sair de outras casas que não eram só as casas da literatura. De repente, Caxias, Porto Alegre, Brasília… tanta distância parecia não ter distância alguma.
Tudo o que eu esperava em termos de expectativa saiu ao contrário, porque fui preparada para um Brasil que chega a Portugal: ensolarado, suado. Quando cheguei a Caxias, encontrei um frio de rachar, muita chuva e, de repente, estava ali a tentar agasalhar-me entre livros, ilustrações e tantas outras coisas que me faziam aquecer.
A expectativa para esse encontro (de sábado) é aquela que eu tenho para todos os encontros. Que seja feliz, que seja de descoberta e, acima de tudo, que estejamos bem. Que nos descubramos ainda mais uns aos outros. Aliás, acho que essa é a grande maestria da arte: desvendar os segredos que temos enquanto seres humanos, mesmo que não sejamos perfeitos. Enquanto vivemos, trabalhamos, respiramos, somos e lemos.
Como tem sido o trabalho da Bichinho do Conto durante esse período de pandemia?
Como nós também temos um grande trabalho na indústria e nas artes gráficas, o grande desafio foi, de fato, olhar para a editora, para a gráfica, para todos os trabalhos que fazemos. E olhar para nós enquanto entidade empregadora. Foi muito importante colocar os empregos das pessoas que trabalham conosco a salvo. Talvez por isso não tenhamos parado de trabalhar nunca.
Num primeiro momento, mais em casa. E toda a desconfiança, o medo de não saber o que era o vírus, acabou por me recuar criativamente, pela falta de sol, de rua. Mas as coisas foram se transformando e fui me habituando, até porque sou um bicho que gosta de estar em casa. Minha família também. A nossa casa é meio biblioteca, meio atelier. Me sentia mais protegida e, a partir dali, fazia tudo.
Claro que as vendas da livraria baixaram imenso, mas as áreas de edição, produção gráfica e design tiveram um peso determinante para podermos aguentar todos os outros. E também o trabalho de ilustração e de curadoria por encomenda ganharam um espaço maior, que nos permitiu sobreviver.
O Quintal da Língua Portuguesa é um projeto internacional que debate as interfaces culturais e artísticas nos países que falam o idioma. No seu trabalho como artista multifacetada (ilustradora, editora, livreira, escritora, curadora), quais são as interfaces que chamam mais atenção?
Eu penso que a maior interface cultural e artística é mesmo a batida cardíaca. Embora hoje as redes tenham uma proporção muito grande nas nossas vidas, em Portugal ainda somos muito dependentes da comunicação social mais tradicional. Eventos como esse ainda crescem devagar. Eu diria que, tal como um quintal precisa ser plantado, regado, deixar que passem as estações do ano, essas iniciativas também precisam desse tempo.
Não sinto que há um grande boom, mas à medida que os encontros vão se desenvolvendo, despertam interesses em diversas áreas. Agora temos sentido um olhar mais intenso na procura de “o que é?”, “como se pode participar?”. Ou seja, o importante é essa interface humana que gera e esse zum-zum na mesma língua que começa a criar outros quintais.
Pra mim, enquanto ideia, o Quintal é uma das maiores demonstrações de ternura e generosidade com a língua portuguesa. É um encontro democrático e, acima de tudo, livre. Isso me deixa muito feliz, em poder fazer parte desse trabalho. Me sinto aprendiz e eternamente grata por fazer parte dessa família tão bonita.
Além de ser a convidada de junho, você também é uma das curadoras do Quintal da Língua Portuguesa, que retomou suas atividades em fevereiro deste ano. Qual sua avaliação dos encontros realizados até agora?
A avaliação até agora é muito positiva, no sentido em que todos eles são um pretexto para nos encontrarmos e esperarmos o próximo. Ficamos sempre com pena que eles acabem. Tenho em mim que este projeto, que começou já há alguns anos, com esse grupo maravilhoso, é um quintal já enorme, com muitas árvores frutíferas, com muito legume literário e que está preparado para espalhar e vender as sementes. Tenho um orgulho imenso dos meus pares e espero estar à altura deste desafio.
Às vezes me sinto um bocadinho angustiada por não conseguir estar mais perto. A distância em si não é o problema, o que impede é uma série de trabalhos e imprevistos que vão aparecendo toda hora. Por mais estranho que pareça, não tem nada a ver com a pandemia. Tem mais a ver com a maneira como todos nós dividimos o tempo e a maneira como a cultura é imprevisível e nos obriga muitas vezes a mudar as rotas dos nossos projetos.
Não é um caminho fácil. A toda hora nos reinventamos. Precisamos sempre tornar possível. Para mim, esse é o maior desafio: tornar possível todo o trabalho que vamos fazendo ao longo do tempo. Espero que todos estejam bem. Sábado lá estarei na hora marcada. Um abraço imenso!
Leia também:
Comments