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Volnei Canônica

O PDF destrói a experiência da leitura na infância

Atualizado: 5 de fev. de 2021


A leitura literária de um livro físico é uma experiência sinestésica e artística fundamental para a infância. Sem essa experiência, a formação de leitores fica bastante comprometida. Podemos apenas contribuir para que as crianças sejam decodificadoras do texto e mantidas à parte das referências sobre a arte visual narrativa.


Os efeitos do livro impresso transformado em formato PDF são tão maléficos que eu poderia enumerar e abordar diferentes questões e ainda não daria cabo de todas. Partindo, evidentemente, da infração da Lei nº 9.610/98 do Direito Autoral, e seguindo pela subtração e desrespeito ao trabalho dos autores e do mercado editorial. Mas vou abordar esses malefícios pela perspectiva na qual atuo de maneira mais efetiva, que me permite fazer afirmações aparentemente duras. São, na verdade, afirmações embasadas na prática da mediação de leitura.


Retomo aqui o pensamento sobre leitura como experiência. De outra maneira, não seria necessário o envolvimento de diferentes artistas na concepção do livro. Na estruturação do seu formato, opção pela natureza do papel específico a cada tipo de leitura, em sua gramatura, a diagramação da obra trabalhando a respiração do texto, o ritmo entre a sequência das páginas gerando a surpresa, um ritmo proposto para o leitor. Você já se questionou por que uma ilustração invade a próxima página ou por que motivo quem projetou o livro deixa uma página sem texto ou sem imagem? Se já se questionou, está entendendo do que estou falando.


Quando livros infantis, projetados para serem impressos e encadernados, se transformam em um arquivo PDF, retorna-se ao formato de leitura em rolo, como era do pergaminho, como na leitura egípcia ancestral. Fazer isso é achatar a tridimensionalidade, deformar as ilustrações, excluir o movimento do livro, aniquilar a textura e o trabalho de diferentes artistas: escritores, ilustradores, diagramadores, editores, revisores, tradutores. Então, quando entregamos um PDF, o que realmente estamos entregando ao leitor?

Quando um livro chega na biblioteca, na sala de aula, na livraria ou na casa de um leitor, chega também uma experiência, uma vivência, um jogo. O livro é um brinquedo. Não só porque o livro tem buraco pra enfiar o dedo, texturas tridimensionais, não só porque pode emitir sons, ter linguetas que acionam um elemento surpresa. O livro é um brinquedo porque ele sugere um jogo o tempo todo.


Se o livro é esse jogo que dialoga com o leitor, o PDF é a anulação dessa conversa.


A própria forma do livro aberto, transformado em uma canoa entre as mãos, permite que o leitor se desloque no espaço e no tempo. O texto verbal cria um jogo de linguagens e ritmos, sugerindo ao leitor que vire a página para acompanhar o enredo. As ilustrações possibilitam novas leituras, podendo dialogar, esconder, reforçar ou até trazer um ângulo contraditório em relação ao texto verbal. O que acontece, na ausência do projeto gráfico original, com o efeito revelado na próxima página, uma ação inusitada para a história, se não podemos virar a página? Não acontece! Este efeito desaparece.


Neste momento de pandemia, onde está essa canoa para o leitor realizar o seu deslocamento estético e poético? Transformado em PDF?


Como imaginar o livro que, no meio da narrativa, precisa ser virado livro de cabeça pra baixo? Virar o quê neste caso? O computador ou o celular? Ou deixamos pra lá? Isso era só uma artimanha dos autores que perderam tempo com essa bobagem?


Por que existe livro comprido, livro redondo, livro quadrado ou retangular? Por que não há um só padrão, como na forma burocrática do PDF?

O que acontece com um livro sanfonado (leporello) quando transformado em PDF? É uma sanfona quebrada? A experiência literária é um luxo desnecessário e por isso pode ser jogada no lixo? Reduzir um livro sanfonado a um PDF é como atravessar com um trator de verdade sobre um trem de brinquedo, daí se dirá para a criança: ficou todo achatado, mas ainda é um trenzinho. É só fazer "piuí" com a boca que vai ficar tudo bem. Use a sua imaginação, poxa!


O livro é um objeto tridimensional e precisa ser visto desta forma. Não estou falando sobre o livro digital. O e-book foi pensado para a plataforma virtual. Não é um PDF, assim como o filme criado a partir do livro não é o livro. Mudar a linguagem do produto exige reinventar o produto.


Uma das maiores artistas para a infância, a autora checa Kvéta Pacovská, ganhadora do Prêmio Internacional Hans Christian Andersen em 1992 – Categoria Ilustração, diz que o livro é o primeiro museu da criança. Eu também acredito nisso. Hoje, a tecnologia nos possibilita visitar museus do mundo todo. Mas sabemos que esses museus digitais foram muito bem pensados, de modo a transformar essa visita em uma experiência. Os museus digitais não são simples reproduções das obras dispostas numa configuração de PDF.


Qual experiência compartilhar o livro físico no formato de PDF proporciona ao leitor? O PDF prepara o leitor para algum nível de contato com a arte? Projetar um livro numa tela aumenta o repertório de leitura das crianças? Não lembro de nenhum livro que as minhas professoras projetaram. Já os livros que eu procurava nas estantes da biblioteca e que pesavam na mão, na mochila, ganhavam espaço no meu quarto, ou colocados embaixo do travesseiro antes de eu pegar no sono, esses eu lembro. Não todos! Mas de muitos.


Será que compartilhamos o livro em formato PDF porque ainda acreditamos na literatura para a infância como apenas um instrumento de propagação de uma ideia? Ou nos deixamos levar pela falsa ideia de que a narrativa verbal é mais importante que a visual e, até mesmo, que a experiência contida nesse objeto que une diferentes linguagens?


Todo adulto, quando está na universidade, acha uma chatice ler um texto em PDF. Adoraria ter o livro para ler, não é verdade? Imagina a chatice para uma criança que tem a sua experiência reduzida de forma brutal ou até aniquilada por causa do PDF.

Escuto algumas pessoas argumentando que entregar o PDF de um livro para a criança é a forma de democratizar o acesso à leitura, já que no Brasil as políticas públicas não saem do papel ou o preço do livro é caro. Volto a afirmar: o que estamos disponibilizando com o PDF é o afastamento da leitura na infância. Definitivamente, o PDF não resolve o problema da leitura no país.


Em 2018 me posicionei contrariamente à forma como a comissão organizadora do Prêmio Jabuti via os livros para a infância e a juventude. Um dos pontos que eu defendia era que o livro infantil não poderia ser avaliado pelos jurados no formato PDF. Como um júri vai escolher o melhor livro para criança sem a possibilidade de vivenciar a experiência que proporcionam os diferentes formatos, movimentos e projetos gráficos, aliados à linguagem verbal e visual?


O mercado editorial brasileiro e mundial tem olhado para o objeto livro infantil com essa complexidade da tridimensionalidade e da experiência. O livro é um produto cultural que precisa ser consumido como uma experiência.


Há anos trabalho na formação de leitores, percorrendo esse Brasil afora. Nunca vi um leitor dizer: foi num PDF que eu me encontrei. Então, ao largo da minha experiência de mediador de leitura, eu reafirmo aos pais, aos professores e aos governos que o PDF não ajuda a formar leitores. PDF afasta o leitor do livro literário. PDF anula a experiência literária. PDF é um saco!


O assunto da democratização da leitura por meio do PDF tem sido debatido em lives no Instagram do Instituto de Leitura Quindim, nas sextas-feiras, às 21h. Já foram realizados dois debates envolvendo os autores André Neves, Roger Mello e Penélope Martins, que, além de autora, é advogada e mediadora de leitura. Nesta sexta (23/10), teremos a presença do autor e distribuidor Antônio Schimeneck.


Fica o convite para que todas, todos e todes participem da live para contribuir com a discussão sobre esse assunto tão importante que envolve toda a cadeia do livro e principalmente, o jovem leitor.


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